Para que serve um seguro?
Caro leitores,
Há quem, por vezes, me apelide de arrogante. Eu, na mais pura inocência, sempre achei que, bom, se calhar tais pessoas não estão a perceber bem o que eu quero dizer. Ou então, não estão a perceber a forma como eu quero dizer as coisas.
No entanto, por vezes paro para pensar: talvez eu seja mesmo arrogante. Talvez todas as pessoas percebam exactamente o que eu quero dizer, e compreendem a forma como eu digo as coisas, e depreendem disso tudo que eu sou simplesmente arrogante.
Hoje, no entanto, a confusão apoderou-se de mim.
Quando pensava que todos nos compreendíamos, que todos sabíamos o que era viver em sociedade ou, em última instância, o que é a civilização, vejo esta reportagem no Primeiro Jornal da SIC.
(Vejam-na, a sério. Aqui, caso não tenham dado pela hiperligação no parágrafo antecedente deste parêntesis. E se eu vos dei duas hiperligações possíveis, é porque quero mesmo que vejam!)
A notícia é triste, digna de um Portugal que (só quem nasceu num meio pequeno sabe que) não passará disto.
Mas há um momento peculiar nesta reportagem.
O depoimento de um senhor, que pela propriedade com que fala pertenceu alegadamente à organização do evento, e que não dá a cara. (Vá-se lá saber porquê... Preencham o espaço em branco: Marcelo Rebelo de Sousa dá a cara porque é inteligente. Se este senhor não dá a cara, é porque não é ___________.)
"Não fomos procurar se se era possível se não era possível. Nós pensámos entre todos, coisa que se calhar nunca ninguém fez de tentar fazer um seguro. Prontos, complicaram-nos também um bocado essa situação e depois acabámos até por não fazer seguro nenhum. Nunca ninguém tinha feito, não foi possível, as pessoas, prontos..."
Neste momento, a jornalista interrompe o senhor.
E eu aproveito para analisar as palavras do senhor.
Portugal é isto, leitores.
Portugal é aquele país da Ásia Subsaariana que teve a infelicidade de nascer no sudoeste europeu.
É aquele país onde alguém pensa fazer uma corrida de rally e onde não interessa para nada um seguro.
Este senhor, que concerteza aprendeu mais depressa que o Gervásio a separar as embalagens usadas, acha que nunca nenhum grupo de pessoas que procuram organizar uma corrida pensou entre eles.
Aliás, pela propriedade com que fala, este senhor julga que nunca ninguém pensou neste mundo! Estamos, portanto, perante uma personalidade histórica, amigos.
Foi ele o inventor do pensamento. Foi ele o pioneiro, quem pela primeira vez pensou algo.
E pensou no quê?
"Epá, uma corrida de rally ilegal aqui em Figueiró é que era, hein! Manda vir uma mini para comemorar esta ideia!"
A jornalista pergunta ao senhor:
"Não foi possível [fazer o seguro] porquê, sabe-me dizer?"
E o professor da Humanidade volta à carga:
"Porque as pessoas diziam que... Não se... Não sendo uma coisa se calhar não oficial e em termos de lei não nos sabiam dizer e então descosiam-se um bocado na gíria como se costuma dizer que não era possível fazerem fazer seguro. Portantos, no fim acabámos por não fazer. Mas eu penso que neste caso, quer com seguro quer sem seguro, o acidente iria-se dar na mesma, percebe? Aqui o seguro já vai ser para segundo plano. O primeiro plano neste momento é mesmo as vítimas, as pessoas."
O início desta fala, confesso, não percebo.
Parece-me, no entanto, normal. Eu sou um reles humano, que se passeia neste mundo até ao dia em que a Eternidade me chame.
Mas este senhor é o pioneiro do pensamento. É normal que eu não perceba o que ele diz.
Se calhar a seguradora não permitiu a este senhor fazer o respectivo seguro porque, na verdade, a seguradora não percebeu o que ele dizia.
Tudo isso devido a um elevado diferencial de Q.I. entre este senhor e as pessoas que, geralmente, trabalham nas seguradoras.
Pode-se dizer que foi a inteligência de senhores como este, os organizadores, que provocou os acontecimentos que hoje fazem notícia nos noticiários televisivos.
Fossem eles um pouquinho mais burros e talvez tivéssemos um Amarante-Dakar no próximo ano.
(João Lagos, não se torne inteligente, por favor. Continue esse burro descomunal que, com as excelentes organizações e com os devidos seguros, trás os grandes eventos a Portugal. A inteligência, deixe-a para os organizadores de Figueiró.)
Mas o Einstein das organizações de corridas ilegais ainda nos deixa uma pérola filosófica.
A ideia de que o acidente aconteceria de qualquer forma, tivesse a corrida seguro ou não.
E é aqui que Portugal se destaca.
Aliás, Portugal devia ter no seu Bilhete de Identidade Internacional este pensamento: "Era o destino. Para quê um seguro?"
Como é sabido, em todas as corridas legais, com seguro, nunca ocorreu um acidente.
Nada.
Sebastien Loeb nunca desistiu de uma prova de rally por ter tido um acidente.
(Nota: talvez a última frase corresponda à realidade. Apenas porque Loeb não é um padeiro que decide ir fazer rally no 1º de Maio na pista de Figueiró, com um carro que já não vai à inspecção há uma década...)
Mas, se calhar, não é nada assim. Eu é que estou a ser arrogante com este caso. E com este senhor.
Percebe-se claramente que este senhor não sabe o que é um seguro.
Não sabe o que é viver em sociedade. Ou, em última instância, não sabe o que é a civilização.
Está, portanto, no caminho certo para um dia ser Presidente da Câmara Municipal de Gondomar.